O CORAÇÃO DO BAOBÁ
Os baobás povoam a África há muito tempo, e são como muitos corações abraçados: fortes e inabaláveis. Mas também são retorcidos, como as voltas de uma história. E com raízes profundas e algumas cicatrizes..
A lebre, depois de um dia cheio de aventuras para obter comida, vinha voltando para casa de mãos abanando e estômago vazio. Certamente sua esposa reclamaria e falaria durante horas em suas já compridas orelhas. Aliás, vai ver que era bem por isso que suas orelhas eram tão grandes: para suportar melhor as reclamações dos outros! A lebre vinha de cabeça baixa, pois era tarde e o peso de tudo a incomodava.
Quando passou por baixo do Baobá, de um que sempre tinha de cruzar, para poder entrar em, sua toca, ouviu as folhas da grande árvore cantando:
” Caluê, caluê dendê.
Sem boca, cantamos pra você.
Caluê, caluê dendê.
Sem voz, falamos com você.
Caluê caluê dendê,
coração sem porta
abre e ninguém vê..”
A lebre jamais tinha reparado na voz daquele Baobá. Ficou com uma vontade enorme de parar e ouvir, mas assim que se encostou ao tronco da árvore, caiu num sono profundo.
Acordou assustada, sobressaltada, ainda mais atrasada do que nunca.. Mas parecia que o tempo tinha parado, pois as folhas da majestosa árvore ainda repetiam a mesma cantoria:
” Caluê, caluê dendê.
Sem boca, cantamos pra você.
Caluê, caluê dendê.
Sem voz, falamos com você.
Caluê caluê dendê,
coração sem porta
abre e ninguém vê..”
Então a lebre teve uma idéia. E era sua última oportunidade para não chegar de mãos vazias a sua casa:
-Sabe, seu Baobá? Sua sombra se espalha por um longo terreno, mas bem que seus frutos poderiam fazer o mesmo, não é?
Parece que o Baobá aceitou a provocação da lebre, porque na mesma hora bateu uma rajada de vento e os frutos tomabaram aos milhares. A lebre ria de orelha a orelha, enquanto catava o que era possível..
Mas isso ainda não era tudo! Como se não bastasse, o Baobá também ofereceu à lebre o seu coração, cantando:
” Caluê, caluê dendê.
Sem boca, cantamos pra você.
Caluê, caluê dendê.
Sem voz, falamos com você.
Caluê caluê dendê,
coração aberto
abre abre hoje só pra você..”
E como num passe de mágica, o baobá! “shiiiiiishiiiiiiishiiiii!” foi abrindo devagarzinho o seu enorme tronco, deixando a lebre ver tudo o que havia por dentro. Um imenso tesouro, de que ninguém suspeitava a existência:pedras preciosas, como o brilho da amizade, tecidos bordados em fios de ouro, como alinha que eleva um coração a outro, colares das mais reluzentes pérolas, polidas como o amor..
Os olhos da lebre se incendiaram diante de tamanha riqueza. Até faltavam-lhe olhos para admirar toda aquela preciosidade. Parecia que o Baobá dizia em seu ouvido:
Lebre… lebre… leve o que for possível carregar com você… é presente do meu coração!
Em meio ao maravilhamento a lebre se foi, carregando muitos presentes para a sua esposa, o que certamente a deixaria menos raivosa pelo atraso e pela ausência de caça, e … provalvelmente, mais vaidosa, pelo brilho que os enfeites iriam irradiar, de agora em diante.
Na mesma hora a esposa da lebre saiu enfeitada da cabeça aos pés, para exibir-se para a vizinhança. Em seu passeio, encontrou logo a hiena, que encheu os olhos de cobiça… A notícia já se tinha espalhado.
-E então, comadre lebre, onde foi mesmo que seu marido arranjou todo esse tesouro?
-No velho Baobá, querida…. -foi logo dizendo a esposa da lebre. E aumentou a história, para parecer também mais importante aos olhos da vizinha. E quanto mais a lebre descrevia a aventura de seu marido, mais a hiena faiscava de inveja!
-Eu também irei até esse Baobá… Pode esperar! Quero só ver o que ele tem para me dar!
Dito e feito. Entre um pôr-do-sol e um amanhecer, lá estava a hiena para tentar a sorte com o Baobá. E tudo se passou exatamente como a lebre havia contado. O Baobá cantou, alargou sua sombra, espalhou seus frutos, abriu seu coração e ofereceu seus tesouros à hiena.
Mas a hiena era mais gananciosa do que o Baobá pensava. Foi pegando tudo e caiu na besteira de levar consigo um enorme embornal, para enchê-lo também de jóias. E ainda fez pouco caso quando pensou ter ouvido o Baobá dizer:
-Leve hiena… leve o que for possível carregar com você… é presente do meu coração!
Com seu riso costumeiro, a hiena dizia para si mesma:
-Eu quero isso… e mais isso… eu quero tudo, tudo só para mim… e se eu não puder levar tudo hoje, pode estar certo de que voltareis em breve para dizimar esse Baobá.
De repente, parece que o Baobá pressentiu o perigo! Rapidamente fechou seu tronco e seu coração, e a hiena ficou lá, presa para sempre. E morta!
É por isso que o Baobá não abre mais seu imenso tronco; nem para os homens, nem para os animais. Ninguém sabe dos intermináveis tesouros que há em cada uma dessas enormes árvores.
Mas de uma coisa todo mundo ficou sabendo: desde esse dia, tudo ficou mais difícil para as hienas. Elas se viram, de repente, obrigadas a vagar pelo mundo à procura de carne. Nada do que é vivo serve, pois elas só comem carne morta.
E os baobás continuam desafiando o tempo e os homens. E os homens podem ainda escolher, se querem ser como os baobás ou como as hienas…
” Caluê, caluê dendê.
Sem boca, cantamos pra você.
Caluê, caluê dendê.
Sem voz, falamos com você.
Caluê caluê dendê,
coração sem porta
abre e ninguém vê..”
MÃE ÁFRICA: MITOS, LENDAS, FÁBULAS E CONTOS.
Autor: Celso Sisto
Editora: Paulus, 2007,
144 páginas.
Fiquei fascinado pela essa grande arvore e também pela lenda descrita.