O peso das palavras..

Posted by on 6 de novembro de 2011

 

A coroa do nosso Rei- Casa Branca do Engenho Velho- Salvador

“Amor é fogo que arde sem se ver;/É ferida que dói e não se sente;/É um contentamento descontente;/É dor que desatina sem doer”.

“Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.”

Uma coisa fantástica de se conviver em comunidade é que cada um tem a sua forma de pensar e agir, ninguém precisa concordar o tempo todo com o que outro diz. Essa é uma das nossas maiores riquezas, conseguimos discordar e mesmo assim nos respeitar. Concordo totalmente que a escravidão sempre será uma coisa horrorosa e triste. Também concordo que as traduções são formas de interpretação dos fatos, que muitas vezes vão favorecer a visão daquele que interpreta..

 

Ayrá òjo mo pè re'se. A mo pè re'se.

Só discordo totalmente quando alguém afirma que é contra o uso, “interpretação” ou tradução da palavra escravo. Não acho que deixando de utilizar uma palavra iremos apagar o seu significado. A História nos ensina isso.. Em 14 de Dezembro de 1890 todos os papéis, livros de registros fiscais e de matrículas do período da escravidão no país foram queimados, por ordem de Rui Barbosa (Ministro da Fazenda). Embora existam outras explicações menos nobres, se diz que foi para que esse período tenebroso de nossa História fosse esquecido. Será que conseguimos esquecer? Claro que não, pelo contrário, a escravidão está mais viva do que nunca.

Por outro lado, essa tentativa de esquecimento gerou um problema muito sério.. Com a perda desses documentos foram perdidos os registros de procedência desses homens e mulheres que chegaram aqui na condição de escravos.. Embora trouxessem em sua alma todas as lembranças, não tinham mais como provar de onde vieram.. Isso faz com que atualmente seja muito difícil, quase impossível, para algum afro-descendente tentar provar legalmente que seu avô (ou bisavô) tenha sido escravo, ou ainda qual era a sua origem: Angola, Zambia, Nigéria, Benin, Savalu.. Gostaria muito de comprovar legalmente minha(s) origem(ns) africanas, adquirir dupla nacionalidade, mas como? Foi tudo queimado..

 

Placa de tombamento da Casa Branca. Resultado de muita resistência e luta.

No meu axé (Engenho Velho) costumamos realizar, no dia seguinte a festa do nome, a cerimônia do Panan, onde será feita as quebras das kizilas do iyawo. Uma das etapas dessa cerimônia é a compra do Iyawo, que é apresentado a todos como um escravo.. É feito uma espécie de leilão e aquele que der o maior lance fica com o iyawo. Para uma pessoa mais desavisada o ritual pode parecer um ato de violência e sem sentido. Expor alguém, como escravo, que absurdo.. Mas me recordo bem, meu pai sempre explicava a todos ao final do ritual: “um filho de santo (iyawo) não se vende e nem se compra, o valor de cada um é único e não há dinheiro que pague.” Aquele ritual nos fazia recordar de todo o sofrimento de nossos ancestrais, mas ao mesmo tempo também nos fazia mais fortes. Sabíamos que a partir daquele momento não estávamos mais sozinhos, tínhamos um orixá a nos proteger, fazíamos parte de toda uma comunidade, estávamos novamente ligados aos nossos ancestrais, sabíamos o nosso valor. Teríamos que continuar resistindo..

Embora saiba que a escravidão não ocorreu exclusivamente com os povos africanos, escrevo principalmente pensando nesse povo, já que são meus ancestrais mais próximos. Não gosto da palavra “matar” ou “sacrificar”, entretanto sei que sempre farão parte do culto, nas Casas de Candomblé, embora já existam pessoas querendo modificar isso também. Como oferecer determinadas oferendas a Ogún sem cantar; “èjè s’orò ‘ro Ògún pa o”? Quando uso a palavra eru como escravo, tenho o mesmo pensamento. Embora possam carregar uma simbologia difícil de ser entendida para alguns, faz parte da cultura que herdamos (que não é a cultura ocidental). E outra coisa, sabemos o porquê e quando as utilizamos..

Com relação à frase “O pássaro, é escravo de Ossain, ainda que seja livre”, estava apenas utilizando uma linguagem poética. Sou filho de Ogún, mas aprendi que não devemos levar tudo na ponta da faca. Existem várias formas de prisão, que não necessariamente acontecerão com correntes ou grades..

 

Oxum! Mãe do primeiro iyawo.. Senhora dos nossos corações.. Mãe do Amor..

Como nos diria Luiz Vaz de Camões: É querer estar preso por vontade;/É servir a quem vence, o vencedor;/É ter com quem nos mata lealdade./ Mas como causar pode seu favor/Nos corações humanos amizade,/se tão contrário a si é o mesmo Amor?

TEXTO ESCRITO POR  JONATAS GUNFAREMIM

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